Mallarmé dizia que a vida é um lance de dados. Na verdade, não sei se ele falava da vida. Talvez falasse de tudo. Tudo é um lance de dados. Tudo é por acaso. Cada passo do percurso. Cada página do tempo. Cada volta de cada elétron de cada átomo. Tudo, em cada instante, é resultado da sorte. Ou do azar. Mallarmé falava de tudo. Além do acaso, não há nada.
– Caótica! – vocês me apontarão os dedos acusadores.
Sim, eu sei, nós temos Deus. E Deus, diria Einstein, não joga dados. Talvez seja isso: na crosta de uma pedrinha perdida no universo surgiu a vida e o homem e a consciência de si e de ser no mundo. Esse acidente absolutamente pontual no tempo e no espaço talvez não seja casual. Talvez tenha sido Deus, de fato: “ali, naquela irrisória pedrinha durante um instante absolutamente ínfimo se comparado à eternidade”, disse o Criador, “viverá Cecília”. Deus é uma ideia reconfortante. Mas ela pode soar um pouco ingênua.
– Caótica, sim – respondo – e não há o que eu possa fazer quanto a isso.
Não adianta: por mais que eu creia, não posso descartar a possibilidade de que qualquer coisa – inclusive aquilo que ainda não conheço – aconteça no instante seguinte. Posso inspirar pólens da pitangueira. Ou conhecer um novo amor. Ou empacotar num enfarto. Posso inclusive acordar do transe em que sempre vivi. E todos acordarmos. E surgir uma nova aurora no meio da tarde de sexta.
Nesta sexta, 13 de agosto, há quem tema o azar. Entendo o temor dessas pessoas: elas se dão conta, precisamente nesta data, de que estão sujeitas ao acaso – e então se sentem inseguras. Não estão erradas. Errado é acreditar que essa insegurança se restringe a esta sexta. Errado é não ver que estamos sempre sujeitos ao acaso.
Quanto a mim, gosto disso. Da incerteza. Do caos branco das pitangueiras em flor. Não me angustia o fato de estar sempre sujeita ao azar. Aprendi a conviver com essa infinita fragilidade. Tudo sempre pode acontecer. As piores tragédias. Os traumas mais profundos. O armagedon. Mas também êxtases ou milagres ou o momento mais feliz de toda a história. A mim, o que importa é sobretudo isto: as coisas que mais acontecem, simples e prosaicas, vêm sempre renovadas no fluxo do acaso. Cada pequeno gesto, cada beijo de paixão, cada sorriso de criança – tudo isso é uma dádiva. Afinal, tudo isso é um lance de dados. Um lance de sorte.
A maior dádiva é compreender que nesse fluxo do acaso, nessa infinita vazão do tempo-espaço entre as margens da existência, nesse universo em movimento de que falava o poema de Heráclito – aí eu existo. Nós existimos. Existe a consciência. É verdade que também isso – eu, nós, a consciência – muda e movimenta-se. Mas há algo que aí permanece. Algo que se distingue do fluxo eterno e total. Algo como uma peneira retendo as pepitas no rio. Eu, nós, a consciência: isso é a constelação que as pepitas formam a cada instante – e sobretudo a peneira em que elas se enredam.
Uma hora a força do rio prevalece. Peneira, pepitas, tudo se perderá na vazão caótica da correnteza. Não importa. Terá existido a vida. Este fato é um lance da mais sublime e insondável sorte. Tão insondável que a razão jamais poderá explicar. Tão sublime que só pode ser obra de Deus.
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