Opinião

Victor Emendörfer Neto: O Leviatã domesticado

Victor Emendörfer Neto: O Leviatã domesticado

Imaginem a cena: Hobbes e Locke, dois dos grandes gênios que a Inglaterra produziu nos séculos XVI e XVII, encontram-se num pub em Londres. Há grande diferença de idade entre eles; mas são ambos adultos, lúcidos e senhores de seus maduros pensamentos. Depois do quinto copo da mais legítima ale, a conversa encrespa-se. Hobbes insiste na ideia de que a sociedade precisa se organizar num ente de poder insuperável que faça cessar a guerra de todos contra todos. Locke retruca dizendo que essa organização só se justifica se atende a razões fundamentais: a proteção dos direitos naturais dos homens. O velho Thomas exalta o Leviatã onipotente. O jovem John quer domesticá-lo. 

Não sei se essa conversa de fato existiu. Mas ouso afirmar que ela figura o debate mais importante da história política da Inglaterra. Esse debate estabelece as bases para o advento da mais sólida democracia do mundo. E essa solidez deve muito aos dois protaganistas daquela (possível) conversa. Locke é o pai da democracia inglesa: sua teoria política, a afirmar os direitos do homem, extrai destes seu fundamento. Hobbes é o avô: só há direitos porque há uma ordem estabelecida; só há essa ordem porque há o Estado. 

No Brasil de hoje, em certos grupos (inclusive de whatsapp), ouvem-se conversas que vão na direção oposta daquela que ocorreu, segundo imaginamos,  há quase quatro séculos. Há quem fale, por exemplo, em “intervenção militar”. Há quem defenda armar a população para forjar uma espécie de “estado do individualismo absoluto”, em que cada um defende o que é seu (inclusive contra o Estado, se necessário for). O simples fato de que essas ideias sejam debatidas – com grande estardalhaço – causa terríveis danos ao país. Em especial, à economia. Nada é mais prejudicial a qualquer projeto econômico do que a instabilidade política. 

Temos tratado, nesta coluna, dos riscos que afligem os empresários. Falamos já de riscos econômicos e jurídicos. Reservamos o artigo de hoje aos riscos políticos. Estes são, sem qualquer dúvida, os mais ameaçadores. A perspectiva de golpes, a possibilidade de rupturas, a simples ameaça de um governo centrado em figuras ou grupos e não em instituições democráticas – tudo isso corrói a economia. Não apenas porque espanta investimentos (que, claro, buscam estabilidade), mas sobretudo porque abalam os fundamentos da atividade econômica. 

Hobbes ensinou que sem o poder estatal não há ordem; sem ordem, não se pode falar em respeito à propriedade ou aos contratos; sem respeito a isso não há economia. Locke mostrou que a ordem, em si, não basta: é preciso que ela respeite os direitos básicos dos homens – inclusive aqueles ligados à propriedade e aos contratos; logo, é preciso haver instituições que assegurem o exercício correto daquele poder. Hobbes revela seu Leviatã – o Estado, o monstro onipotente que faz cessar o caos. Locke ensina a necessidade de domesticá-lo. O iluminismo francês daria o próximo passo: Montesquieu, Rousseau e outros estabeleceriam uma teoria política baseada em instituições democráticas. Os “Founding Fathers” – Washington, Jefferson, Hamilton, Franklin – aplicariam a teoria na prática. 

Os países considerados desenvolvidos são caracterizados exatamente por essa estabilidade política. Pelo estado de direito. Pelo respeito incondicional à ordem constitucional democrática. Não há outra fórmula. Nos EUA, na Inglaterra, nos demais países da Europa ocidental, ninguém fala em golpe, intervenção militar ou quejandos; e, se alguém fala, ninguém leva a sério. Afinal, soa ridículo acreditar que determinados homens ou grupos – pelos discursos que fazem ou pelas fardas que vestem – vão salvar a nação. Quando se trata de política, só há uma posição sensata: acreditar no funcionamento de instituições democráticas. O resto é delírio. 

Esse delírio, entretanto, tem feito estragos ao Brasil. Não apenas porque causa instabilidade política, mas também porque drena nossa capacidade de construir um país melhor. Em vez de pensar no aprimoramento de nossas instituições, muitos querem destruí-las. Desejam ver o Leviatã babando de raiva diante de inimigos reais ou imaginários – sem perceberem, os que assim desejam, que qualquer um pode ser presa dum monstro assim iracundo. Há até os que – num delírio mais profundo – não querem mais um Estado: querem apenas armas para lutar na guerra de todos contra todos. Querem quatro séculos de retrocesso. Ou, pra sermos mais rigorosos, quatro milênios.

Nada é mais venenoso para o ambiente econômico do que esses riscos políticos. A instabilidade que geram abala o fundamento precípuo de nossa organização política e social: a confiança em construirmos democraticamente o futuro deste país. Sem essa confiança, estamos perdidos. 

Precisamos do Leviatã e de sua força ordenadora. Precisamos domesticá-lo com as instituições democráticas. E precisamos acreditar novamente em nossa capacidade de fazer isso. É nossa única alternativa: focar nesse projeto de país. Temos que tentar realizá-lo. Temos que confiar nisso: nós podemos. Afinal, por que não poderíamos?

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

Comentários:

  1. De fato, é um momento perigoso. O Brasil não pode abrir mão do Estado Democrático de Direito, estruturado na proteção de garantias e direitos fundamentais e num ambiente de divisão de poderes que ampare a independência das decisões judiciais, propicie a criação legitimada (por representação) de um direito secular e que, por fim, seja administrado por um executor servo do Estado Democrático e não de sua egoica vontade. Sem um ambiente estruturado e estável, o que continuaremos observando será o prosperar de um terreno pantanoso onde se desenvolve, principalmente, o coleguismo, o clientelismo e a corrupção.

    Darwinn em 06/04/2021
    • Ótimas observações, Darwinn. Obrigado!

      Redação Abertura em 20/04/2021
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