Opinião

Vítor Véblen: Jotabê fisiológico

Vítor Véblen: Jotabê fisiológico

Sim, eu concordo: os discursos de ódio, a midiosfera extremista, a guerra cultural – tudo isso é assustador. Concordo também: é principalmente isso o que se destaca no bolsonarismo. Temos sempre a sensação de um golpe iminente. Vivemos com o receio de levantar pela manhã e receber a notícia de que homens armados tomaram o poder. Carregamos constantemente o medo de que se tornem realidade os anseios declarados – com todas as letras (e símbolos) – pelos apoiadores mais ardorosos do Presidente.  

Mas estes não são meus principais temores. Não acho que um golpe armado seja o desdobramento mais plausível da crise política e moral que experimentamos. Não são as armas de Jotabê – as armas, nada metafóricas, que ele de fato tem – o que mais me assusta. Eis minha maior preocupação: a assimilação do bolsonarismo pelo sistema. Numa expressão mais performática: temo a bolsonarização da política. De todas as figuras que povoam meus pesadelos, eis a mais assustadora: o Jotabê fisiológico.

Há um mês, escrevi neste espaço: “também Bolsonaro é uma peça do tabuleiro – um reizinho do pau oco – movida por mãos escusas. Se isso é verdade, o jogo agora entra numa fase mais obscura. Se esse é o arranjo à base da República, um Bolsonaro definitivamente digerido pela politicagem mais vulgar, então essa vulgaridade passa a ter um tremendo poderio.”

Há uma semana, tratando da CPI da COVID, voltei ao tema: “Jotabê, que finge combater o ‘sistema’, talvez esteja sendo assimilado por este. Completamente assimilado. Afinal, ele está sendo empurrado – sempre mais – para os braços longos do centrão. Por que deveríamos supor que o sistema destruiria Jotabê, se pode simplesmente se aliar a ele? Por que duvidar dessa aliança, que aliás já existe e é cada vez mais forte? Por que acreditar na verdade da encenação?”

Ernesto Araújo, ex-chanceler de Bolsonaro, declarou na semana passada: “o projeto de construir uma grande nação minguou no projeto de construir uma base parlamentar”. Não acho que Jotabê tenha buscado, em qualquer tempo, construir uma grande nação. Mas sei que ele quer construir uma base parlamentar. Ou melhor: um certo grupo político, representado por uma certa “base paralmentar”, tem o projeto de assimilar Jotabê, de digeri-lo, de incorporar seus poderes “míticos“. Pura metafísica canibal. Fisiologismo dos trópicos.

No que isso vai dar? Quais as ameaças concretas ligadas a esse processo literalmente fisiológico? O que resultará dessa classe política bolsonarizada?

Desde logo, é possível antecipar uma resposta: a bolsonarização da política deve resultar na solidificação de um grupo com interesses econômicos, ideológicos e religiosos convergentes. Jotabê serve como um amálgama desse grupo.

A partir disso, é possível pensar em futuros movimentos. Eduardo, o terceiro filho, há poucos dias deu um exemplo: “Presidente de El Salvador @nayibbukele tem maioria dos parlamentares em seu apoio. Agora, o Congresso destituiu todos os ministros da suprema corte por interferirem no Executivo, tudo constitucional.”

Repararam nas duas últimas palavras? “Tudo constitucional.” Os apoiadores do Presidente já deixaram bem claro que têm seu próprio conceito de “constituição”. A política bolsonarista, a base parlamentar fiel ao (e senhora do) Presidente, os longos braços do sistema envenenado – tudo isso tem um poder imprevisível e, ao mesmo tempo, cinicamente “constitucional”.

O portal R7 publicou ontem, 4 de maio: “A presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, Bia Kicis (PSL-DF), pautou para terça-feira (4) projeto de lei que inclui na Lei de Impeachment a previsão de crime de responsabilidade por ministros do STF (Supremo Tribunal Federal). O projeto de lei, que tipifica crime de responsabilidade dos ministros do STF a usurpação de competência dos Poderes Legislativo e Executivo”.

Um grupo político forte, amalgamado pelo bolsonarismo, pode desfigurar o STF em golpes rápidos e sutis: alguém vai pra rua defender o Gilmar Mendes? A “República”, com uma Suprema Corte servil a esse grupo, pode ser o que eles quiserem. A democracia pode sucumbir sem que um tiro seja disparado.

Já sabemos disso há tempo. Não se pode duvidar das façanhas do fisiologismo tropical. Nem tampouco das tendências antidemocráticas que assaltam, como uma maldição perpétua, a América Latina. É preciso estar atento e forte.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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