O homem disse:
– Este é meu último texto.
E escreveu o último texto. Cumpriu a palavra, guardou a caneta na gaveta, junto com o isqueiro e um canivete que trouxe do Paraguai. Depois, cobriu a máquina de escrever Olivetti com um pano de veludo azul e olhando a silhueta lembrou da cobra que engoliu um elefante. Pegou as folhas com seu último texto, escritas à mão, corrigiu e refez algumas partes no resto branco que cabia. Por fim, datou e disse e tom cerimonioso:
– “A arca, porém boiava sobre as águas do abismo.” (1)
O homem pousou o maço de folhas na mesa e se afastou, um passo, outro e a mão esquerda em gesto impensado tocou o interruptor e apagou a luz.
Na cozinha, o homem disse:
– “quem não é um acaso na vida?” (2)
E pegou a chaleira, encheu de água e pousou sobre a boca do fogão. Riscou um fósforo, girou o registro do gás e acendeu. Olhou a chama azul e disse:
– “Fabiano estirou o beiço, duvidando.” (3)
Água fervida, pó, filtro e lá vem o líquido para a caneca lascada, branca desbotada.
Sorveu o primeiro gole com medo, com cuidado e queimou a língua. Teve raiva e disse:
– “Deus é paciência. O contrário é o diabo.” (4)
Voltou para seu escritório, acendeu a luz, abriu a janela e percebeu que chovia e estava frio. Fechou a janela e se voltou para sua mesa, apoiou sua xícara, tocou o maço de folhas com a ponta dos dedos e disse:
– “precisamos amar para não adoecer.” (5)
E sentou-se na sua cadeira, pegou uma folha branca, olhou o veludo azul e lembrou, abriu a gaveta, pegou a caneta e viu o isqueiro e o canivete.
O cão chamado Diadorim, seu cúmplice e escutador, se ajeita no tapete embaixo dos pés do homem e finalmente suspira aliviado.
(1) – Machado de Assis
(2) – Clarice Lispector
(3) – Graciliano Ramos
(4) – Guimarães Rosa
(5) – Sigmund Freud
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