Não direi a idade que tenho. Direi apenas que chorei quando Domingos, o divino, fez o pênalti em Piola. Minhas lágrimas então me batizaram. Fui Serjinho, depois Serjão. Fui menino e homem ao pé do rádio, diante da tv, sobre a arquibancada – sempre hipnotizado pela bola. Passadas mais de nove décadas, constato estarrecido: a vida trouxe amores e desilusões, fé e desesperanças, certezas e dúvidas – trouxe tudo e levou tudo embora: só nunca levou o futebol. Tive sempre comigo, pervasiva e inexorável, a fixação pelo jogo.
É uma constatação de gosto estranho. Ao fim da vida, gostaria de tê-la dedicado a uma causa mais nobre. Gostaria de ter sido um revolucionário que se sacrificou à libertação do povo. Ou um poeta que viveu como um instrumento da arte. Ou um cavalheiro que morreu por causa dum grande amor. Mas não: dediquei grande parte da minha vida ao Botafogo. Eventualmente, ao Marcílio. Nas datas-FIFA, à Seleção. Minha grande causa, confesso envergonhado, é o futebol.
A vergonha é dupla. Não só porque o futebol é, em si, uma causa pouco nobre. Mas também porque sua pouca nobreza, ao longo desses meus tantos anos, só diminuiu. Não há mais a altivez apolínea dos grandes estilistas: um Didi, um Beckenbauer, um Di Stéfano. Não há mais a arte pura e indômita dos craques-meninos: um Maradona, um George Best, um Garrincha. Não há mais os gênios da raça, que pareciam apontar um outro estágio evolutivo da espécie humana: um Obdulio, um Cruyff, um Pelé. Sim, há ainda a fúria dos enfrentamentos, o coro das torcidas e a catarse do gol. Sobretudo isto: o gol. Ele ainda extasia, e no êxtase nos revela, e na revelação nos cura. Talvez seja isso que buscamos, eu e os tantos que tanto da vida dedicam ao futebol: o êxtase, a revelação, a cura do gol. Mas até isso, a mais íntima essência do futebol, parece perder-se.
Desde que começou a “Era VAR”, o gol se partiu em dois: primeiro, o lance fatal, a bola na rede, o gol em si; depois, a confirmação pelo juiz. O instante catárquico se transformou num processo em dois atos – não raro, com uma insuportável demora entre um e outro. O grito – o efeito do gol em cada pessoa – soa agora como uma ilusão, um ato ilógico, uma reação a um evento que ainda não se consumou. Diria Aldir Blanc: “é como a falsa euforia de um de um gol anulado”. É o êxtase partido em dois cacos no chão.
O êxtase não pode ser partido. Sua existência é momentânea. Sua essência é uma porção indivisível do tempo. Ele é sempre – e apenas – um instante. Pensem na contradição intrínseca desta cena:
– Vem, amor!
– Vou!
– Vem, amor!
– Vou, vou!
– Vem, amor!
– Aaaah…
– E aí, gozou?
– Não sei, tô conferindo…
Pensando bem, o gol partido é a expressão fiel do futebol destes tempos, os últimos de minha vida. Tempos em que a própria realidade se partiu em duas. Tempos em que está sempre em suspenso a definição do que é real. Pensando bem, estes tempos são como aquele intervalo entre o gol e sua confirmação: uma falsa euforia, um grito partido ao meio, um êxtase inseguro de sua própria razão de ser. Pensando bem, o tempo e o futebol sempre me preocuparam mais do que deveriam.
Não, não direi a idade que tenho. Só direi que ela é tão avançada quanto meu Alzheimer. E que o médico avisou sobre certa pulsão melancólica que viria no auge dos sintomas.
Comentários: