Arte

Wagner Rengel: Tênis Barato

Wagner Rengel: Tênis Barato

Queria dizer que sinto muito e foi onde tudo começou.
Sinto por esta perda, aquela perda, essas lágrimas.
Sinto pelo descaso, pela banalidade que tornaram a dor, o amor, o gesto mais gentil.
Foi assim.
E quando começou, não consegui parar.
Fiz o caminho para verificar e quem o fez não era eu, nem o autor, nem o narrador.
Quem fez era outro.
Sinto muito.
Que toda dor se vá com o fim deste dia.
Que os dias que seguirão curem os cortes.
Somos de carne, mas também de osso.
Somos osso.
Aguentamos.

(O miniconto a seguir foi escrito em abril de 2018 e vem para dizer a todos que sentem as dores deste viver, as perdas desses dias, os enlutados, vem para dizer que sinto muito e que vai passar).

Tênis Barato

Fui embora sentindo o impacto do chão que reverberava do calcanhar até as bochechas. O tênis barato, de sola dura não tinha conforto em caminhadas mais aceleradas. Precisei diminuir a velocidade. Me senti velho a cada passo e quis esconder a pele, que já faltavam ingredientes para dar consistência mais firme. Colágeno, me disseram.

O chão passando pelos meus pés me fez desviar de pensamentos enfurecidos.

Talvez devesse ir pelo caminho mais longo e prolongar a inutilidade do tempo que se constrói entre um lugar e outro. 

Dobro a esquina e a esquina me lembra os tortos do mundo, começando pelos canhotos. Ninguém inventa um abridor de latas para canhotos por duas razões: trata-se de um gene recessivo, então supõem-se que não há mercado. A outra razão é que os canhotos aprendem desde cedo a usar todos os utensílios e materiais para destros com a mesma ou até melhor eficácia que os ditos genes dominantes.

Sou um recessivo e um dia achei que seria um diferencial para ser um bom jogador de bola. Nem para isso. Estava sempre entre os últimos, quando não era o último, a ser escolhido para pelada. Nunca se sabe o que se encontra quando se dobra uma esquina. Nessa hora é bom ficar esperto. Qualquer hora é bom ficar esperto. Esquinas e futebol são caixinhas de surpresas. Frase feita. Prefiro as esquinas.

Avisto o local e faltam uns cinquenta metros. Juventude se mescla entre skatistas e maconheiros na Praça do Gaúcho. Um bom lugar para parar e olhar, só olhar. Ainda dá para desistir. Ninguém me viu aqui ainda. Poderia ir para o bar, um café ou ir para casa dormir. Estou cansado. Meus pés doem. Esse tênis barato faz vibrarem minhas bochechas.

Não consegui parar e os pensamentos são apenas desvios das tormentas que vêm pela frente.

Me aproximo. Capela um, capela dois, capela três. É aqui. Vejo seu nome, coroas de flores, rostos estranhos e alguns conhecidos. Vou embora. Eu não posso fazer isso. Entro, meus pés doem. Vejo a família sentada ao redor. Devem estar cansados. Uma noite inteira velando. Quanto tempo levará entre aqui e lá? Que horas será o enterro? Que desculpa dou para sumir daqui? Não posso. Fico mais e não consigo mais desviar os olhos do caixão. Não tenho mais caminhos para recobrir alguns pensamentos. Vou até a viúva, lhe abraço e digo que sinto muito. E só. Ela soluça e se afasta. Um padre entra. As pessoas se levantam. Eu já estava de pé, sentindo o latejar dos dedos. Começa a falar como se fosse íntimo daquele ali que todos sabiam que era ateu. 

Aproveito e saio, enquanto todos ouvem o padre que tudo vê. Que se dane se me viu. 

Sentirei saudades. Amigo de bar é como senha de fila de banco. Você espera e sabe que uma hora vão te chamar. Ninguém sabe quem irá primeiro, todos escondem os seus números. Antes ele do que eu. E quando um vai, o bar toma dois caminhos: do abandono e do beber o morto. Uns aprendem, outros é tarde demais e tudo será razão para voltar. 

Meus pés doem. Sinto reverberar o chão duro na minha pele flácida. Falta ingrediente. Andarei mais devagar. O tênis é barato. A cada esquina lembro dos tortos. Que ódio! Basta. Não te esquecerei, meu amigo. Sou homem de caminhar e não posso te olhar mais assim tão sério. Sorria em minha memória! 

Acho que vou descalço até minha casa. Preciso de um banho. Aguento. Vou de ônibus. Tênis barato. Vai começar a chorar agora?

Vai passar. Como o chão passando debaixo dos meus pés, vai passar. 

(W.R. Abril de 2018)

Wagner Rengel

Wagner Rengel quis ser silêncio depois pássaro depois peixe depois vento depois grilo quis ser gente depois nada. Mora em Curitiba.

Comentários:

  1. Poema e miniconto feitos de humanidade. Belíssimo.

    DARWINN HARNACK em 24/04/2021
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