Dei dois pequenos passos para trás. Era o espaço que havia ali. Diante de mim, o som incessante da cachoeira, alto, grave e a altura, uns dez metros talvez, que não deixava escolha. As pedras úmidas se misturavam com limo, barro e bromélias. Um paraíso para ser contemplado, palavra esta que ninguém ali sequer sabia falar. A gente fumava um baseado lá embaixo e depois subia pela encosta de pedras, uma trilha escorregadia e íngreme.
Lá em cima não havia como voltar. A água gelada lá embaixo, o tempo do voo, da queda, o contato com a água ardia os pés e pressionava o queixo para cima. Havia sempre quem era um pouco mais e pulava de cabeça ou escalava a parede de pedras e escolhia lugares mais altos. Os heróis.
Essa fase da vida é um ritual de passagem constante, o tempo todo, o colégio, os amigos, os amores, as drogas. Depois que passa disso, quando passa, segue, marcado, fundado como alguma coisa que não se sabe ao certo e leva para o resto da vida em memórias estranhas misturadas com orgulho e insensatez.
Criando coragem era a forma de dizer do tempo de espera. Ou se tem ou não se tem. Aquele lugar natural e quase secreto, barragem envelhecida pelo tempo e pela força lenta e constante da natureza de se apropriar do que é seu. Abandonada à própria sorte, um sonho louco de retirar energia dali, onde a cidade acaba, a rua acaba, o mundo acaba. Coisa de quem cria e daqueles restos, talvez outra energia que buscávamos. Ainda não sei dizer o nome dela, mas o corpo, as sensações, o descontrole, o limite e entender o que é coragem compunham um pacote que só fazia sentido com o outro, os amigos, as inesquecíveis más influências. Um lugar e uma busca onde o tempo parava alguns segundos.
Os dois passos para trás devem ser exatos para se lançar à frente e pisar na pedra que faz borda com o vazio e a queda do instante em que o pé se descola do controle dura um segundo ou dois o tempo no ar vazio e se vê aonde vai cair até tocar a água que se abre forçando a película extrema que é mais forte do que se imagina tento manter o corpo reto para tocar primeiro o calcanhar e abrir a água mesmo sendo tudo muito rápido me sinto entrando os pés pernas tronco e a pressão no pescoço para finalmente estar inteiro dentro da água afundando afundando afundando num contraste progressivo e lento de silêncio escuro, opaco e calmo pronto a água gelada junto com o susto a adrenalina tiram todo o semblante de querer ser adulto levando junto o barato da maconha e voltar à tona é como nascer de novo.
Todo mundo ali queria nascer de novo, ter outra vida, ser outro e mesmo dando mil saltos naquela cachoeira, ninguém conseguiu não voltar o mesmo, exausto, para aquela casa em que os pais nem sabiam por onde os filhos andavam.
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